Descentralização e Corrupção
publicado na Revista Visão, 24'Out'2019
A descentralização administrativa do Estado para as autarquias – expressão onde cabe, de acordo com o previsto na nossa Constituição, a região administrativa, o município e a freguesia – é há décadas uma realidade em grande parte dos países europeus. E assim é porque se percebeu ser este um instrumento basilar de aprofundamento do Estado de Direito democrático. E porquê? Porque, em princípio, permite que a idiossincrasia dos recursos humanos e materiais dos países seja valorizada como um activo, aportando inclusive um plus: o incremento da participação cívica, natural quando as causas nos são próximas.
Um dos motivos para o atraso de Portugal na concretização da descentralização pode estar relacionado com a fraca confiança num exercício apto da autonomia local. O Conselho de Prevenção da Corrupção concluiu num estudo recentemente divulgado, que metade dos casos de corrupção no nosso país têm origem nas autarquias. Não se eludirá este facto se, com a transferência de competências que tem estado a ser concretizada em especial ao longo dos últimos dois anos, não existir uma tutela administrativa real, efectiva e dentro dos limites constitucionais, do Estado sobre as autarquias. Para que todo este processo deixe transparecer que na sua base esteve uma política pública bem pensada e organizada seria importante que não duvidássemos da capacidade das autarquias para absorver competências, desde logo porque se apresentam devidamente capacitadas ao nível financeiro e em especial, humano.
Em Agosto de 2018 foi criada a Comissão Independente para a Descentralização, cujo mandato, ao contrário do que possa numa primeira atenção parecer, não foi o de pensar o processo de descentralização para os municípios que, como se disse acima, tem vindo a ser executado. O seu objecto, conforme pode ler-se no relatório apresentado em Julho deste ano, centra-se na avaliação das condições para a descentralização nas «regiões administrativas, nas áreas metropolitanas e nas comunidades intermunicipais».
Feita a precisão, não deixa de se atentar neste facto ali constatado: «(…) o ordenamento jurídico português não logrou ainda encontrar um verdadeiro sistema articulado e eficaz na luta contra o fenómeno da corrupção.», ínsito no quarto capítulo daquele relatório, que se dedica por inteiro à preocupação com a prevenção da corrupção naquelas entidades, em caso de descentralização. Aí aconselha-se a efectiva implementação de sistemas anticorrupção, através da utilização da Norma Portuguesa ISO 37001, homologada em 2018, sob o título «Sistemas de gestão anticorrupção. Requisitos e orientação para a sua utilização», e que na introdução refere: «É expectável que uma organização bem gerida disponha de uma política de conformidade assente em sistemas de gestão
apropriados que a assistam no cumprimento das suas obrigações legais e no seu compromisso com a integridade». A Comissão conclui ainda que, avance-se ou não para a materialização das regiões administrativas (já previstas quase há trinta anos na Lei-Quadro das Regiões Administrativas), devem ser introduzidos mecanismos de boa administração que não se cinjam aos já previstos, porém circunscritos à actividade financeira.
Aplaude-se com entusiasmo estas conclusões, a bem de uma descentralização necessária e útil, que não se esqueça também de ser eficaz.
publicado no Jornal Expresso, 13'Nov'2019
“Operação Teia”, “Operação Rota Final”, “Operação Éter” … O ano de 2019 tem sido fértil em investigações criminais direcionadas ao combate à denominada “criminalidade administrativa” a envolver responsáveis autárquicos e violações aos procedimentos de contratação pública.
Esta área de negócio do Estado tem, em Portugal, um impacto socioeconómico significativo. Cerca de 50% dos fundos estruturais da União Europeia (UE) recebidos pelo país são gastos através de processos de contratação pública, representando quase 20% de toda a despesa pública, ou seja, o equivalente a 10% do PIB português.
Da consulta aos dados disponíveis no Portal BASE.GOV constata-se que entre agosto e setembro de 2019 (últimos dados disponibilizados), mantém-se a tendência de quase metade do total das adjudicações públicas em Portugal serem realizadas através de ajuste direto. E com o aproximar do fim do ano fiscal, não se augura probabilidade de inversão. Para melhor esclarecimento, atente-se no quadro abaixo: (ver original)
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Apesar dos sucessivos alertas da entidade com responsabilidade na prevenção de riscos de corrupção no setor público, ou de outras com competências quer de fiscalização quer sancionatórias, questiona-se a sua efetiva ressonância. Valores como a transparência, a legalidade e a defesa da sã concorrência, desígnios relevantes no Código dos Contratos Públicos (CCP), nas Diretivas Europeias sobre contratação pública e a outros países civilizados, apenas planam sobre a genuína intenção, porém com correspondência prática sofrível, na realidade administrativa portuguesa.
A importância da diminuição do recurso ao ajuste direto na contratação pública é óbvia e visa, em primeira linha, salvaguardar a prossecução do interesse público: evitando-se a discricionariedade da escolha pública, mitiga-se a distorção da concorrência, prevenindo-se a probabilidade de ocorrência de fenómenos de corrupção.
Por outro lado, é sabido que, em larga medida, o insistente recurso a este tipo de procedimento prende-se com a ineficácia e a ineficiência da gestão, nomeadamente ao nível do planeamento. Não será, por outro lado, despiciendo considerar que o investimento na especialização dos profissionais, exigível face à complexa estrutura deste tipo de procedimentos, não tem sido propriamente uma prioridade. E nem se pense, assim sendo, que será a existência de um gestor do contrato (conforme previsto no art.º 290º-A do CCP) que contribuirá significativamente para evitar a integridade dos procedimentos.
No fim do dia, a verdade é que o saldo é pernicioso – mais de metade da população portuguesa (55%), de acordo com os dados do último Eurobarómetro especial sobre a corrupção, de outubro de 2017, considera que os funcionários públicos que adjudicam concursos públicos são corruptíveis (acima dos 43% da média europeia).
Em dezembro de 2017, Portugal aderiu à iniciativa Open Government Partnership, tendo apresentado um plano de ação para 2018-2020 centrado em oito compromissos.
No final de outubro deste ano, foi publicado o primeiro Relatório do Mecanismo Independente de Avaliação daquele Plano, da responsabilidade de um investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
E o alerta surge precisamente no que diz respeito à necessidade de reforço da transparência nesta área da contratação pública. Sobre este compromisso, o oitavo, recomenda-se a implementação de uma Application Programming Interface (API), ou seja, de um instrumento capaz de garantir a transparência e a qualidade dos sistemas de e-procurement em cada etapa do ciclo de compras públicas, como seja – acrescentamos nós – a Open Contracting Data Standard (OCDS). Esta ferramenta foi desenvolvida pela World Wide Web Foundation e compromete-se a tornar mais transparentes os dados relativos à contratação pública, engajando eficazmente governos, administração pública e sociedade civil, sendo já utilizada em países como o Canadá, o Reino Unido ou a Austrália.
Outro enfoque das conclusões daquele Relatório surge relativamente à necessidade de implementação de mecanismos de participação cívica, em especial nas fases iniciais dos procedimentos de contratação pública.
E a este propósito, cumpre recordar Miguel Torga, no seu “Diário XIV”, quando dizia: “É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia todo indignado, como e bebe e diverte-se indignado, mas não passa disso. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão. Somos socialmente, uma coletividade pacífica de revoltados.”
Também este velho fado urge contrariar.
Ai, a ganância...
publicado no Jornal Público, 02'Dez'2019
Idolatrar o dinheiro parece-me que é um pecado capital. Neste mês natalício, em que os corações amolecem temporariamente, continuamos a pasmar com notícias de pessoas enganadas com os denominados esquemas Ponzi, por vezes confundidos erroneamente com vendas de marketing multinível.
Não sabemos se quem ainda cai nestes aliciamentos é só ingénuo ou também ganancioso. Mas tendemos a acreditar mais na última hipótese. Sendo um assunto tão mastigado em todos os órgãos de comunicação social, o mínimo que nos parece adequado será informarem-se antes, repito, antes, de investirem o que quer que seja.
Desta vez o engodo veio mascarado de trading de criptomoedas, como sejam as bitcoins, feito por um robot exclusivo, com a garantia de pagamento de 10% de comissão sobre cada nova vítima que comprasse um pacote no esquema, tudo adequadíssimo especialmente quando o destinatário é leigo em moeda virtual.
Um website catita, uma apresentação simples e colorida disponível na internet, com quadrinhos apelativos relativamente aos retornos financeiros, a que se soma a astúcia persuasiva dos mentores nas sessões levadas a cabo em tranquilos hotéis, e está montado o cenário. Depois é só deixar os peixinhos – os gananciosos peixinhos – morderem o isco.
Estava bom de ver que, se descontássemos o vistoso palco de credibilidade, promessas de retorno semanal do investimento na ordem dos 4% a 12.5% por semana, seria o suficiente para fazer soar as campainhas todas. Quem pode pagar essas taxas de rentabilidade, não precisa do seu dinheiro. Mas não foi assim que, mais uma vez aconteceu. E lá se sucedem as queixas, os choros, as perdas, tudo sobre leite derramado, enquanto quem montou o esquema fica, muitas vezes, a rir-se desbragadamente.
Este tipo de crime (burla), de acordo com o RASI de 2018, mantém uma tendência de crescimento preocupante. O que de mais útil se pode aqui transmitir é o seguinte:
Surgiu-lhe uma oportunidade de investimento rápida, simples e muito lucrativa, com risco baixo ou nulo? Desconfie.
Disseram-lhe que os retornos seriam constantes e consistentes? Continue a desconfiar.
Não conhece o vendedor? Investigue-o minuciosamente, pergunte-lhe onde está registado, antes de investir.
Apesar da prosápia do oferente, não conseguiu perceber nada de como o assunto funciona? Informe-se.
Propõe-se a investir sem ler cuidadosamente documentos escritos? Não o faça. Esteja atento a erros nos extractos de conta que podem indiciar a actividade fraudulenta.
Tornou-se difícil receber o seu pagamento ou impossível retirar o investimento? Suspeite. Os organizadores do esquema Ponzi por vezes incentivam os participantes a manterem o investimento, com a garantia de maior retorno.
Conhece o vendedor, de carácter respeitável, que lhe pede para disseminar a oportunidade única? Não o faça, se a resposta às questões acima foi maioritariamente SIM.
Está envolvido numa presepada destas e não sabe o que fazer? Denuncie. Os organismos que devem receber a sua denúncia são a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, o Banco de Portugal, a Polícia Judiciária e o Ministério Público. Não se acanhe.
Ou prefere ser a próxima (gananciosa) vítima?
Finalmente em 2020, combater a corrupção
publicado no Jornal Expresso, 02'Jan'2020
Não será de hoje que o povo clama por um combate firme à corrupção. Com efeito, desde tempos quase imemoriais, que este quisto social existe e se espraia sem controlo efectivo, alarmando e constrangendo as pessoas e as economias. Já no século XIII Alighieri Dante reservou aos corruptos a fervente Quinta Bolgia do Malebolge, no seu Inferno da Divina Comédia, mas que ainda por cá andam, não se hesite em acreditar.
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O que entretanto cambiou de modo indelével foi o nível de informação e exigência dos cidadãos nos seus sistemas de governação. Não, não estamos conformados com altos níveis de pequena e grande corrupção, nem com o que a inércia no seu combate nos devolve: medidas de austeridade, cortes na assistência social ou aumentos de impostos, e o governo que não perceber isto, corre riscos de pagar um preço alto no futuro. Enquanto soubermos que se reforça o orçamento da saúde nuns insuficientes 800 milhões e se desperdiçam 18.000 milhões por causa de actos corruptivos, não, não nos poderemos nunca acomodar.
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Esta constatação conduz-nos a várias dúvidas metódicas sobre o real interesse de quem nos vem governando desde que vivemos em democracia, em atenuar, para dizer o mínimo, as maleitas causadas pelo entorte social causado pela corrupção. Uma má gestão (prolongada) deste problema mina, necessariamente, a confiança dos cidadãos e abre brechas na coesão social, suportadas oportunisticamente por populismos. Haverá ainda incertezas sobre o quão importante é alavancar esta confiança, de modo contínuo e não só em altura de eleições?
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Aparentemente sim. De que nos servirá a criação de grupos de trabalho para pensarem uma estratégia de combate à corrupção, sem o devido suporte político? De nos servirá, afinal, um documento deste género, bem capeado e alardeado com certeza, se não se atacar aquilo que realmente preocupa as pessoas como seja a falta de transparência da administração, a certa prestação de contas das instituições, a promoção da equidade perante a lei, a não discriminação ou o pugnar por um verdadeiro impulso participativo da sociedade civil? Que se ganhará em permitir que as pessoas acreditem que manter determinados níveis de corrupção interessa a uns poucos privilegiados? Não estará o justo a pagar pelo pecador? Ou já não existem justos? Renovamos neste 2020 uma esperança que acreditamos não se revelará vã.
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Comece-se então por dar bons exemplos. Materializem-se sem medos as intenções em resultados concretos, provando aos cidadãos a vontade real de mitigar este problema. Não se permita que a Entidade da Transparência seja um nado-morto. Disponibilizem-se recursos. Não se deixe estrangular dolorosamente a Entidade das Contas. Mantenham-na viva e capacitada. Respeite-se a CRESAP. Não a permitam moribunda a representar uma comédia trágica. Valorizem-se as instituições públicas e as pessoas que as compõem. Acredite-se na criação de valor público. Crie-se legislação adequada ao combate a este fenómeno. Não se incentive mais letra legal morta, a cair na primeira vírgula estrategicamente colocada. Exija-se e demonstre-se rigor. Nas contas públicas, na gestão dos orçamentos, no exercício de funções. Ouçam-se de facto as pessoas. De modo imparcial, eficaz e franco. Afinal, é por elas que se governa.
Desentorpeçam-se os obstáculos à boa vontade, apaguem-se os slôganes e efective-se a acção. Deixe-se a luz do sol iluminar os valhacoutos da corrupção.
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São estes os votos de uma cidadã portuguesa para 2020.
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Ajuste não tão Direto, s.f.f.
Compliance em Portugal
publicado no Jornal I, 22'Jan'2020
Qualquer empresa devidamente esclarecida tem sedimentadas as consequências da ocorrência de situações fraudulentas, desde logo na sua imagem reputacional. Mas não só. Impactos negativos consideráveis nos lucros ena legalidade das operações, permitindo a aplicação de sanções, são preocupações reais que têm impulsionado os sistemas de compliance a trilhar o seu caminho.
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Recentemente, a consultora Deloitte divulgou o primeiro Fraud Survey Portugal, documento que espelha a mais recente percepção dos funcionários relativamente a fenómenos de fraude, dentro das suas organizações. De entre as várias conclusões alcançadas, destaco o facto aparentemente contraditório de 64% dos inquiridos considerar que os mecanismos de prevenção da fraude em Portugal melhoraram, não obstante 47% acreditarem que as situações de fraude nas empresas aumentaram nos últimos anos e 70% estarem convencidos que aquelas não tenderão a diminuir, nos próximos anos.
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Ora, precisamente o que está aqui em causa é a percepção por justaposição à realidade, do fenómeno da fraude. E o que contribui definitivamente para esta discrepância será muito provavelmente o facto de não encontrarmos quantitativos e caracterizações cientificamente credíveis, da real dimensão da fraude. Vivemos dentro do velho axioma: “No creo en brujas, pero que las hay, las hay”. Evoluir dos estágios de percepção para o estudo aprofundado da realidade permitiria, com maior grau de fiabilidade, encontrar as soluções adequadas a prevenir, detectar, mitigar e sancionar, as ocorrências de fraude. Por outro lado, reconhecidamente mais e melhor justiça, fomentará um desejado ajuste às percepções evidenciadas.
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Permitir que a influência dos opinativos domine o conhecimento assente em factos, reduz a hipótese de se implementarem as melhores soluções.
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Outra das conclusões daquele survey a merecer relevo é a relativa às áreas de negócio consideradas mais propícias ao surgimento da fraude, com a contratação pública a surgir na pole position das desconfianças, seguida das áreas comercial e de financiamento. Sobre esta ilação, independentemente da sua efectiva correspondência, importa referir o esforço que vai sendo feito em Portugal, nomeadamente na digitalização total dos processos de compras públicas.
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Mas não duvidamos que o recurso às mais modernas ferramentas digitais que permitam mitigar o erro analítico conduzirá indubitavelmente a ganhos, entre outros, ao nível da transparência, desde que em subordinação a uma abordagem holística que incorpore boas práticas em técnicas de computação, ética e garantia da informação.
Assim os lucros das empresas o permitam.
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Ética e Lucro: duas faces da mesma moeda?
publicado no Jornal Expresso, 12'Fev'2020
Por conta do alarde meio desvairado, porque o caso era sobejamente suspeitoso para dizer o mínimo, em volta do assunto Luanda Leaks, várias vozes têm, e bem, defendido que as principais consequências deste tipo de acontecimentos não são tanto financeiras ou jurídicas, mas antes éticas.
Com efeito, aos que direta ou indiretamente se viram e vêm envolvidos no problema, não terá faltado capacidade profissional, contudo esta diluiu-se numa triste fluidez ética. A questão de fundo, a que concorre a par das ilegalidades supostamente verificadas é esta: é possível conciliar lucro e ética? Seria possível terem-se gerado os lucros apregoados se nas decisões tivesse havido preocupação ética? Mais: seria exigível a quem é principescamente pago, que desviasse propositadamente a atenção das questões éticas? E sendo a resposta a ambas as perguntas negativa, para que servirão nesse caso os códigos de conduta e de ética?
Comecemos pelo fim. Em que medida os códigos de conduta e de ética ou de integridade representam a consciência moral da organização? Concorrerão talvez apenas para transformar os seus funcionários em aristocratas da virtude? Nem uma coisa nem outra, quer-nos parecer. Os códigos de conduta e de ética mais não são do que ferramentas de gestão, declarações de princípios, quadros de referências organizacionais destinados a balizar exigências mínimas de comportamento e ao mesmo tempo a dar a conhecer a quem prevarique as eventuais consequências, definindo a orientação da gestão da cultura organizacional.
Não percamos de vista que empresas e entidades públicas são apenas ficções jurídicas. São as pessoas, da gestão de topo ao mais humilde funcionário que as compõem e será a essas que pode e deve ser exigida coerência com os valores da organização demonstrando, a cada momento, a estirpe do seu comportamento individual aplicado. O quadro de valores pessoais, que cada indivíduo/profissional evidencia não pode ser incutido através de códigos de conduta. Aprende-se (ou não) desde cedo e sendo passível de hesitações ou dilemas, será sempre a nossa estrela polar individual, que não nos permitirá desvio do fundamental.
Mas aqui chegados, se estas ferramentas existem, são conhecidas dos funcionários, que não estarão todos, por certo, feridos de ambiciúncula desmedida, por que motivo tal facto terá pesado menos que o ânimo de lucrar?
Voltemos às questões iniciais.
Em 1970, o nobelizado da economia Milton Friedman escreveu provocatoriamente que a única responsabilidade social de uma empresa é aumentar o lucro. Compreende-se que esta tentação seja forte. Mas levada à letra pecaria desde logo num ponto fundamental: olvidaria que é do clima de confiança entre as pessoas que compõem a organização que esse lucro mais facilmente é gerado. A atitude de apenas nos concentrarmos no proveito descurando a ética, não induz a motivação certa. É que como dizia Ortega y Gasset “eu sou eu e a minha circunstância”. E mais cedo ou mais tarde, por ação de hackers ou de um ambiente interno desmotivante, tudo ruirá facilmente ao aproximar da primeira vaga.
Como parece que se está, finalmente, a assistir.
Portugal e o Branqueamento de capitais
publicado na Revista Visão, 20'Fev'2020
Podemos definir branqueamento de capitais como sendo a transformação de fundos provenientes de actividades criminosas, por dissimulação da origem ou do real proprietário daqueles fundos, em capitais reutilizáveis de modo aparentemente legal. Este processo normalmente consubstancia-se em três fases sucessivas e distintas: a colocação de bens ou rendimentos em circuitos financeiros ou não financeiros, os quais por sua vez são alvo de múltiplas e repetidas operações com vista a mascarar a sua real proveniência, para por último se proceder à sua reintegração nos circuitos económicos legítimos.
Esta actividade, em Portugal, constitui crime previsto e punido no artigo n.º 368º-A do Código Penal.
Há cerca de três décadas, Portugal integrou o denominado GAFI (Grupo de Acção Financeira), que consiste num organismo intergovernamental com o objectivo de desenvolver e promover políticas, nacionais e internacionais, de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, através da promoção de padrões internacionais e da aplicação efectiva das medidas legais, regulamentares e operacionais necessárias para combater este fenómeno e outras ameaças à integridade do sistema financeiro internacional. Ciclicamente, este organismo promove avaliações aos países que o integram, datando a última, a Portugal, de 2017. Nessa altura, concluiu o GAFI que Portugal apresentava uma estrutura legal robusta de prevenção e combate ao branqueamento de capitais, tendo, não obstante, formulado recomendações no sentido de serem implementadas medidas mais adequadas ao controlo de actividades e profissões de cariz não financeiro.
Talvez ancorados nestes louros de 2017, apesar de desde então terem sido várias as suspeitas de branqueamento de capitais perseguidas criminalmente em Portugal, o nosso país encontra-se atrasado na transposição da Directiva 2018/843/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho (usualmente denominada como a 5.ª Directiva AML ou Directiva 'Anti-Money Laundering'), a qual, segundo fontes oficiais nacionais, encontra-se porém em fase final de revisão para posterior envio à Assembleia da República. Certo é que o prazo se extinguiu em dez de Janeiro último.
Por este motivo fomos já admoestados com um prazo de dois meses, findos os quais a Comissão pretende dar seguimento ao processo de infracção junto do Tribunal de Justiça da União Europeia.
Ficaria mais tranquila se este atraso não se verificasse. É sabido (o próprio GAFI já o afirmou), que Portugal, considerando a sua ligação histórica a países africanos e da América Latina, funciona como «país de trânsito» para o mercado europeu de capitais branqueados, assim como «espaço de recuo» para indivíduos identificados nos seus países de origem como suspeitos. Mas a par desta conclusão, o facto de apresentarmos mecanismos incentivadores ao empreendedorismo, como seja desde logo a existência do Centro Internacional de Negócios da Madeira, uma cada vez mais elevada taxa de actividade turística e um nível de desenvolvimento tecnológico razoável, deveria constituir preocupação preventiva bastante, mas que ao que parece verifica-se de modo ténue…
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